A presidenta da Comissão de Direitos Humanos e Democracia da Câmara Municipal de Salvador (CMS) em conjunto com a presidenta da Frente Parlamentar em Defesa das Cidades e das Engenharias da Assembléia Legislativa da Bahia (ALBA), vêm a público manifestar consternação pela decisão exarada pelo Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), que acatou o pedido de reintegração de posse movido pela Prefeitura Municipal de Salvador contra as famílias da comunidade da Rua Monsenhor Rubens Mesquita e de suas transversais, no Bairro do Tororó.
O processo que envolveu inicialmente 40 famílias – mas que tem impacto direto sobre mais 660 famílias -, incide sobre uma área demarcada como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) e pela Lei de Ordenamento do Uso e Ocupação do Solo (LOUOS) de 2016, que é ocupada, sobretudo, por população em situação de vulnerabilidade social, majoritariamente negra – como registra o censo de 2010, onde 60 a 80% da população nos setores censitários do local se autodeclarou como parda ou preta.
A referida Comunidade existe há mais de 15 anos e está localizada em parte do entorno do terminal Clériston Andrade – ou “Estação da Lapa”. Em 2018, a liminar possessória foi negada pelo juiz de primeiro grau, nos seguintes termos:
O autor não conseguiu atender aos requisitos legais, especialmente aqueles em negrito no texto acima. Isso porquê não foi juntada uma única prova sequer que demonstrasse que o Município cuidasse da área, preservando-lhe da invasão de populares. Não há registro de cerca ou de qualquer tipo de vigilância no local. Tampouco existe evidência de que as casas construídas aí tenha sido edificadas há menos de ano e dia. Chamo a atenção para o fato de que, muito embora imóvel público não seja passível de usucapião, na forma do estatuído pela Constituição Federal, art. 182, § 3º, isso não quer dizer que quem o ocupa não tenho direito algum a ser mantido aí, ainda mais sem prova cabal de má-fé nessa ocupação, ou sem prova de que a mesma seja recente. Por todo o exposto é que, ante a ausência de prova dos requisitos mínimos para que pudesse ser acolhido o pleito autoral, NEGO a liminar possessória requerida.
A decisão irretocável do juiz a quo, reproduzida acima, foi objeto de recurso por parte da Prefeitura. Neste mês de outubro/2020, então, em pleno estado de emergência em saúde pública em virtude da pandemia do coronavírus, foi publicado o voto do Relator do recurso no Tribunal acatando os argumentos da Prefeitura de que, sem dispor da área, o Município teria de arcar com prejuízos decorrentes do descumprimento do contrato de concessão com o Consórcio Nova Lapa e, consequentemente, determinando a reintegração da posse em favor do município de Salvador. No processo, a Procuradoria do Município informa que a área que pretende-se a reintegração foi objeto de concessão ao Consórcio Nova Lapa em 2015 por 35 anos.
A ZEIS do Tororó é enquadrada na Categoria 1 e marcada como número 27 no Mapa 1B do Anexo 2 da LOUOS (Lei nº 9.148/2016). Destaque-se a definição do PDDU (Lei nº 9.069/2016), em seu artigo 166, acerca das ZEIS e, em especial, a conceituação da Categoria de ZEIS 1:
Art. 166 As ZEIS são destinadas à regularização fundiária – urbanística e jurídico-legal – e à produção, manutenção ou qualificação da Habitação de Interesse Social (HIS) e Habitação de Mercado Popular (HMP), atendendo às diretrizes estabelecidas no Capítulo III do Título VI desta Lei, sendo classificadas em:
I – ZEIS-1: correspondente aos assentamentos precários – favelas, loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais irregulares – habitados predominantemente por população de baixa renda e situados em terrenos de propriedade pública ou privada, nos quais haja interesse público em promover a regularização fundiária e produzir HIS e HMP;
O PDDU (Lei Municipal 9069/2016) em seu artigo 78 traz, ainda, algumas obrigações estabelecidas ao Poder Público Municipal no que concerne à regulamentação das ZEIS:
Art. 78 O processo de regularização das ZEIS 1, 2 e 4 compreenderá a elaboração de Plano de Regularização Fundiária, que poderá ser elaborado por órgãos da administração direta ou indireta do Município ou do Estado da Bahia, com a participação da população moradora da ZEIS em todas as suas etapas e componentes, ou por iniciativa da própria comunidade, com assessoramento técnico qualificado, aprovado pelo órgão municipal de habitação.
Nesses termos, não se pode considerar que haja interesse público materializado em uma medida que poderá transformar uma área de ocupação urbana consolidada, reconhecida como ZEIS pelo PDDU e pela LOUOS de 2016, em shopping, centro de compras, estacionamento ou qualquer outro equipamento. Ao contrário, o interesse público existiria – e estaria sendo cumprido – se, em conformidade com as legislações supracitadas, a área fosse objeto de um plano de regularização fundiária e urbanização do assentamento precário, que assegurasse a efetivação do direito à moradia digna da população no local em que ela já se encontra assentada.
O modelo perverso de desenvolvimento hegemônico se apresenta de forma muito evidente no caso do Tororó onde a população, majoritariamente pobre e negra, é considerada supérflua, a ser sumariamente descartada. A construção de qualquer equipamento que pretenda despejar as pessoas das suas casas em plena pandemia, arrasando um território demarcado como ZEIS, é carregado de racismo. Para a Comunidade, apresentarão – se apresentarem – uma alternativa de vida periférica, em áreas desprovidas de serviços públicos essenciais como transporte público e escola, onde dificilmente conseguirão conquistar algum espaço para viver com dignidade.
Parte considerável dessa comunidade é formada por trabalhadores informais que dependem do fluxo do centro para sobreviver. O fato de terem fixado suas moradias em área próxima do terminal Clériston Andrade – ou “Estação da Lapa” -também justifica-se porque necessitam desenvolver as atividades produtivas que lhes dão sua subsistência na principal “porta de acesso” do centro tradicional de Salvador. Sua remoção para outras áreas, através de programas habitacionais ou indenizações – como postula a decisão do TJ-BA – implica, portanto, não só a perda de suas moradias como também a perda da localização que lhes favorece o desenvolvimento do trabalho. Agravante disso é o custo do deslocamento na capital que possui uma das maiores tarifas do país – R$ 4,20.
O racismo ambiental impregnado na ação movida pela Prefeitura é evidenciado quando se observa que as legislações que instituíram a ZEIS do Tororó são negligenciadas em favor de uma ação de expulsão engendrada pelo próprio ente que deveria promover um plano de regularização fundiária para o local.
Entendemos que o elemento racial é determinante na escolha da Prefeitura em promover a reintegração de posse e precisamos expô-lo como uma opção da gestão, que não é mero acaso, posto que o Prefeito jamais empreenderia uma ação como essa sobre um bairro habitado por pessoas de classe média e alta.
A ignorância deliberada do PDDU e da LOUOS por parte do poder municipal mostra concretamente a forma como enxerga e o tratamento que reserva sua atual gestão aos direitos de populações vulneráveis.
Em consideração a esses fatos, manifestamos repúdio à ação de reintegração de posse movida pela Prefeitura Municipal de Salvador, na certeza de que, se efetivada – conforme determina o TJ-BA, ao reformar a decisão do juiz de primeiro grau que negou a liminar pretendida pela prefeitura -, gerará graves violações de direitos humanos. A atual gestão deveria provar sua coerência para com as legislações urbanísticas que ela mesma promulgou e desistir da ação de reintegração de posse, envidando recursos e esforços para regulamentar a área reconhecida como ZEIS e efetivar o direito à moradia digna da comunidade da Rua Monsenhor Rubens Mesquita e de suas transversais, no Bairro do Tororó.
#NÃO AO DESPEJO DA COMUNIDADE DO TORORÓ!
#DESPEJO ZERO PELA VIDA!
#DESPEJO É VIOLAÇÃO GRAVE DE DIREITOS HUMANOS!
MARTA RODRIGUES
VEREADORA
PRESIDENTA DA COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA DA CÂMARA MUNICIPAL DE SALVADOR
MARIA DEL CARMEN FIDALGO
DEPUTADA ESTADUAL
PRESIDENTA DA FRENTE PARLAMENTAR EM DEFESA DAS CIDADES E DAS ENGENHARIAS DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DA BAHIA